O trabalho da autoafirmação no trabalho: ideia boa é só a minha?
1. Conversava com alguém que ocupa um alto cargo de liderança no ambiente corporativo quando, entre outras das suas falas, registrei na memória as seguintes passagens: “complexidade muito grande pra fazer abraçarem” e “necessidade de reconhecimento”.
Traduzindo o que isso significava no contexto imediato daquela prosa, o que o meu interlocutor tinha em perspectiva era justamente o grau de complexidade não apenas “previsto”, mas por ele também constatado, quando se trata de contar com a adesão das pessoas a projetos que não tenham sido pensados e/ou apresentados por elas.
Dedicando-se um pouco mais nas considerações a esse respeito, o líder a que me refiro empregou, inclusive, a palavra “autoria”. Segundo ele, no que se refere a fazer com que realmente abracem uma iniciativa, o desafio não se detém na necessidade de providenciar os estímulos pensados pra motivar as pessoas a isso: o desafio se constitui no próprio fato de elas não serem as “autoras” dessa mesma proposta, e/ou de simplesmente não poderem reivindicar essa autoria pra si.
Achei esse trecho da conversa “instigante”. Não por uma eventual “novidade” na qual me levasse a pensar, mas, sim, por ser enunciado justamente por alguém que me inspirava uma excelente impressão, no qual vislumbrei um espírito não só de razoabilidade, como também de coerência – o que acho sempre digno de menção, especialmente no cenário atual.
No que envolvia diretamente a sua própria esfera de atuação, recordo bem a experiência compartilhada:
“— Fulano, você não vai propor nada novo, pra que consigamos solucionar tal problema?”, perguntou-lhe o superior a quem esse líder responde.
E a sua resposta se deu mais ou menos nesse sentido:
“— Mas por que eu faria isso, se, em vez de me demorar na proposição de algo ‘novo’ (e que serviria apenas pra que eu me lançasse como ‘autor do projeto’), eu vejo, aqui mesmo na minha mesa, o enorme número de excelentes ideias que já temos trazidas por outros, só esperando pra que as filtremos e sejamos capazes de implementar as melhores?”
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2. Como eu disse, achei “instigante”. Como ainda não disse, achei também inspirador. Porque veja: uma vez que exerce um alto cargo de liderança, esse interlocutor bem poderia se valer disso pra buscar conferir a si mesmo um tanto mais de “prestígio”. (Imagine só a repercussão, sobretudo se bem-sucedida a execução do projeto: “Nossa, você viu só o projeto proposto pelo Fulano, que acabou de assumir como xxx?”.) Na contramão desse impulso, porém, o que ele fez foi, em favor do coletivo, privilegiar a adoção de uma possível solução existente, em vez de investir numa “genialidade” forjada, nascida da própria necessidade de reconhecimento do ego.
Quantos de nós fariam exatamente o mesmo?
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3. Em comum com esse interlocutor, identifico o fato de nos basearmos na mesma crença: a de que o retroabastecimento do individualismo impede a própria construção do bem-estar coletivo.
Acontece que, por mais que seja verdade que a crença elucida e encaminha, não podemos desprezar a realidade de que as nossas ações nem sempre convergem com ela – que o diga, por exemplo, o sem-número de cristãos que, em nome do próprio “Deus acima de tudo”, apregoam a intolerância ao próximo, que culmina no ódio, que eclode as guerras.
Assim, o que me parece é que a clareza do meu interlocutor sobre o que lhe competia fazer não se explicaria unicamente por encontrar ressonância numa das crenças que nos aproximam dentro de uma mesma cultura. Antes, mais do que atestar o que talvez se pudesse chamar como um “não narcisismo”, a questão de não submeter a boa apreciação (ou a plena incorporação) de uma ideia à condição de nela encontrar a sua própria autoria ilustraria, a meu ver, uma espécie de virtude característica de um tipo muito específico de individualidade: o daquela que, qualquer que seja o espaço no qual transite como indivíduo, se entende incontestavelmente como parte do todo.
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4. Por acreditar tanto na “consistência” quanto na coerência desse jeito tão próprio de ser foi que, com base nessa lúcida fala da liderança em questão, já me peguei por diversos momentos refletindo acerca de como, até aqui, a decisão de abdicar da autoria é algo que me alcança de diversas maneiras.
Diga-se de passagem – ou não –, desde que me estabeleci como profissional advinda das Letras, a maior parte do meu trabalho até aqui sempre consistiu em promover o meu próprio apagamento como “autora” (de muitas ideias e, por consequência, de um número que já me é incontável de textos) pra, no lugar disso, facultar o (re)conhecimento alheio. E, isso, de pessoas tanto físicas quanto jurídicas, cada qual num segmento.
Via de regra, essas eram pessoas muito boas no que faziam, mas que não davam conta de, por meio da escrita, explicar esses feitos. Já eu “tinha o dom” de “traduzi-las” e de explicá-los na escrita, mesmo quando as minúcias das suas performances técnicas me pareciam “mirabolantes” – um “salve”, em especial, aos meus então contratantes de Medicina e Exatas!
No decorrer de mais de 20 anos de profissão, talvez eu já possa dizer que aprendi a ser “um bom instrumento”. Fato ao qual acrescento a particularidade de que, como educadora por formação, Rubem Alves já me ensinara a servir como “ponte”, facilitando a travessia daqueles a quem o meu conhecimento agregaria sentido(s). E, uma vez que cada um concluísse o seu próprio percurso, a mim competiria me desfazer como tal, até que a chegada de novos alunos me fizesse ser ponte outra vez...
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5. Ainda sobre os modos como a fala do meu interlocutor faz pensar a existência, sobreveio à memória a leitura que fiz há alguns dias, durante uma prática conhecida como “Evangelho no Lar”.
Conforme orienta o texto evangélico, nenhum de nós indaga a precisa origem do dinheiro que nos chega às mãos. Ignoramos, entre outras coisas, se ele proveio dos cofres de um banco ou das tramas de um crime; se as cédulas que financiam o nosso sustento já foram também manipuladas por um golpista ou trabalhador. Independentemente disso, porém, sabemos usá-las pragmaticamente, em proveito dos fins que mantemos em mente.
Logo, para aqueles aos quais “ideia boa” ainda é “a minha”, não é a “dica” que “fica”, mas a essência de uma sábia lição: “Procure a ideia pelo valor que ela tem”. Inclusive, faça-o independentemente da própria natureza desta fonte que cito — ainda que, à parte as coincidências que (nunca) existem, o livro do qual retiro essa fonte seja, por sorte, uma “fonte” também. Aquela do tipo “viva". Diretamente da “Fonte Viva”.
Iara Mola
20 de novembro de 2024
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