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De “conteúdo-rei” a “conteúdo-plebeu”: um “acidente pavoroso”?


Vamos por partes: se você é um profissional que já contratou serviços de produção de conteúdo para promover a sua empresa na internet – ou, ainda, se você é alguém interessado nesse tipo de contratação –, em algum momento já deve ter ouvido que “conteúdo é rei”, certo?


Geralmente aplicada numa argumentação que visa a convencer o potencial cliente de que, sim, ele precisa investir em Content Marketing – o que, cabe salientar, não é mentira – a afirmativa circula em larga escala entre os especialistas do segmento (e também entre os não especialistas, é verdade). Contudo, à parte a máxima visionária cuja autoria – de acordo com o site Quem Disse – é atribuída a ninguém menos que Bill Gates, o que se pode constatar na prática é que tem muito “plebeu” por aí achando que é “rei”. E, como ambos costumam ser apresentados como “conteúdo”, o fato é que, sem saber distinguir um do outro, muitos contratantes se queixam de que, mesmo investindo em marketing de conteúdo (e, neste artigo, refiro-me particularmente a conteúdo textual), os resultados são inexpressivos (para não dizer que são um verdadeiro fracasso).


Ora, estaríamos diante de algum tipo de “acidente” – e, para muitos empreendedores que desembolsaram quantias mais significativas e não obtiveram qualquer retorno, de um “acidente pavoroso” no que tange ao “reinado” do conteúdo?!?


Conforme você deve ter acompanhado, a expressão “acidente pavoroso” – verbalizada pelo presidente interino Michel Temer na última quinta-feira (5) por ocasião da barbárie ocorrida no presídio de Manaus – repercutiu muito negativamente na mídia e nas redes sociais em geral. Tanto assim que, na própria quinta-feira, Temer se valeu da sua conta no Twitter para registrar “sinônimos da palavra ‘acidente’: tragédia, perda, desastre, desgraça, fatalidade”, como consta em matéria veiculada pelo Estadão. Pelo que se pode depreender, o intuito de Temer foi o de amenizar a polêmica em torno do uso de um termo considerado “inoportuno” para abranger uma ocorrência dessa natureza. Todavia, não dá para dizer que a “errata” publicada pelo presidente tenha solucionado a questão. Até porque, ao recorrer aos possíveis sinônimos da palavra “acidente”, o político não necessariamente “se retratou”: antes, parece ter sugerido que toda a problemática levantada a partir do seu discurso se deu pela falta de vocabulário/de interpretação da população. (#SQN.)



Bem, e no que diz respeito ao marketing de conteúdo, como um episódio envolvendo o “acidente pavoroso” de Michel Temer pode contribuir para amadurecer a nossa reflexão, a nossa própria atuação e, ainda mais particularmente, a adoção de critérios mais específicos na hora de contratar um profissional que escreva diversos gêneros textuais em seu nome e/ou em nome da sua empresa?


1ª Lição: Não terceirize a responsabilidade pela parte que lhe cabe!


Sem dúvida, uma primeira grande lição que podemos assinalar é que, mais do que por uma única razão, o alcance de resultados desastrosos tende a ser uma consequência da ineficiência de várias ações em conjunto. Assim, não podemos excluir a possibilidade de que, mesmo publicando um conteúdo cuja qualidade o eleve à condição de “rei”, as tão esperadas conversões não aconteçam. Isto porque pode ser, por exemplo, que o meio de divulgação desse conteúdo esteja comprometido, ou que as respostas dadas ao interessado (que registra uma pergunta a partir da leitura desse conteúdo) sejam pouco amigáveis ou satisfatórias, entre muitos outros exemplos de iniciativas que não vão bem (ou, ainda, de ausência delas). Portanto, nem sempre cabe “terceirizar a responsabilidade”, tal como Michel Temer pareceu deixar subentendido em seu discurso da última quinta-feira, ao dizer que “o presídio era terceirizado, era privatizado”.


Lembre-se de que, por mais autoridade que o conteúdo tenha, nenhum rei faz história confinado ao interior do seu próprio palácio. Tanto assim que, com um bom investimento para fazê-lo circular, tem muito “conteúdo-plebeu” “mitando” por aí. Entretanto, se o que você deseja é que o seu conteúdo seja reconhecido pela sua autoridade e competência na função, o melhor é garantir que ele seja “rei” e que realmente mostre a que veio!


2ª Lição: Tenha em mente que, no seu conteúdo,

a escolha de cada palavra importa – e muito!


Vejamos: de tudo o que Michel Temer falou nessa quinta-feira, 5, o que mais se destacou na imprensa?


Registre-se que, no final do seu pronunciamento acerca do massacre, ele retomou o “acidente pavoroso” mediante uma segunda definição: “[...] Em palavras finais aqui, eu quero mais uma vez expressar a nossa solidariedade àqueles familiares que perderam seus entes nesse terrível episódio em Manaus [...]” [grifos nossos].


Semanticamente, poderíamos aventar que “terrível episódio talvez viesse a soar “menos inadequado” que acidente pavoroso”, conquanto o significado mais usual do termo “episódio” também remeta a algo “circunstancial”, de acordo? (“Ironicamente” ou não, para sinônimo de “episódio”, o Houaiss apresenta o vocábulo “peripécia”, cujo primeiro sentido corresponde a “alteração repentina, inesperada do curso dos acontecimentos” e cujo segundo sentido corresponde a “incidente imprevisto, mas que não prejudica o curso geral dos acontecimentos” – não obstante o ex-ministro do STJ, Gilson Langaro Dipp, assegurar que a carnificina ocorrida no presídio em Manaus era uma “chacina anunciada”.)


O fato é que, estabelecendo um paralelo entre o assunto da primeira semana de 2017 e o segmento de Content Marketing, a repercussão negativa ao discurso de Michel Temer deixou-nos uma segunda lição da maior relevância: na produção do seu conteúdo, a escolha de toda e qualquer palavra importa, e importa muito.


Como analista do discurso, não posso deixar de reproduzir, oportunamente, uma das grandes contribuições que obtive para o desenvolvimento da minha pesquisa e que me foi dada pelo linguista Sírio Possenti. Segundo ele (2009, p. 93), “dizer de determinado modo implica não dizer de outro”. Nesse sentido – e sem nos aprofundarmos demais nos conceitos –, cabe-nos também trazer aqui um dos postulados de Dominique Maingueneau, um dos maiores teóricos da atualidade na Análise do Discurso de vertente francesa, para quem “o discurso só adquire sentido no interior de um imenso interdiscurso. Para interpretar o menor enunciado, é necessário relacioná-lo, conscientemente ou não, a todos os tipos de outros enunciados sobre os quais ele se apoia de múltiplas maneiras. [....]” (MAINGUENEAU, 2015, p. 28).


Sintetizando bastante o que esses dois grandes autores postulam – e sob o risco de simplificar demais o que por si só tem maior complexidade –, isso significa que, ao nos apropriarmos e/ou reproduzirmos um determinado discurso, estamos rejeitando outro com o qual esse discurso estabelece uma relação e por meio do qual se constitui, da mesma forma como, ao nos apropriarmos e/ou reproduzirmos uma palavra em detrimento de outra, não estamos simplesmente escolhendo um determinado termo cujo valor semântico/discursivo equivale ao de um outro qualquer, pois nenhuma escolha é produto do aleatório: antes, trata-se do efeito de uma inscrição social/discursiva por meio da qual assumimos um posicionamento consoante as ideologias que nos perpassam e consoante o lugar que ocupamos.


Com o perdão aos teóricos (Sírio, considere que a intenção é boa – risos), simplifiquemos a partir do exemplo: considerando o papel que Michel Temer ocupa na sociedade e a maneira como ele se inscreve nela a partir do seu histórico, de suas convicções, filiações partidárias, etc., podemos presumir que, para ele, a palavra que melhor e/ou mais convenientemente define a barbárie no presídio de Manaus é, definitivamente, “acidente”, e não “tragédia”, “perda”, “desastre”, “desgraça” ou “fatalidade”. Discursivamente, não é “tudo sinônimo” – inclusive a contar que, de acordo com o Houaiss, o primeiro significado atribuído a “acidente” é “acontecimento casual, inesperado, fortuito”, sendo que os sinônimos que o renomado dicionário lhe propõe são “peripécia, revés e tribulação” (isto é, nada que imediatamente remeta a “tragédia”, “desastre”!).


Para quem ainda tem dúvidas a esse respeito, sugiro uma reflexão da aplicação desses termos a dois outros contextos: no final do ano passado, o que culminou com a morte de 71 tripulantes no voo do time da Chapecoense foi um “acidente aéreo” ou um “desastre aéreo”, uma “tragédia”, uma grande “fatalidade”?... Independentemente das causas pelas quais isso aconteceu, como o caso foi noticiado e como ele repercutiu no Brasil e no mundo?... (Segundo uma publicação no site do Planalto, Temer teria declarado que foi um “drama que cercou Chapecó”.) E mais recentemente: como foram caracterizados os assassinatos de uma família inteira em Campinas? Algumas das chamadas que encontrei foram: “Vídeo mostra socorro a sobreviventes após chacina em Campinas” (G1), “Autor de chacina em Campinas escreveu carta sobre seu plano” (Isto É), “Autor da chacina em Campinas expõe ódio a mulheres a quem...” (El Pais), “Homem que provocou tragédia em Campinas escreveu carta e...” (Carta Campinas). Assim, para uns, a morte de 71 pessoas durante um voo foi um “drama”, mas a morte de 56 presos não, ao passo que, para outros, ambos os casos configuram “tragédias”. Para uns, o assassinato de 12 pessoas durante o réveillon em Campinas foi uma “chacina”, mas o assassinato de 56 detentos em Manaus não; para outros, em contrapartida, ambos os casos configuram “chacinas”.


Mais do que pela linguagem, exclusivamente, a questão é o contexto no interior do qual esses enunciados são veiculados, por quem o são e, falando em termos mais descontraídos, qual a posição que esse enunciador ocupa na "fila do pão". Em outras palavras, isso significa que, se Temer estivesse se comunicando unicamente com o público que se identifica com o seu posicionamento ideológico/político e, por consequência, também discursivo, a aplicação de “acidente pavoroso” para descrever um verdadeiro massacre no presídio teria sido ao menos satisfatória. No entanto, ao se dirigir a um público heterogêneo, cujos posicionamentos ideológicos/políticos/discursivos diferem dos seus, o presidente não apenas acompanhou a rejeição ao seu discurso, como também a sua contestação. Isto porque, na essência, não se trata do uso indiscriminado de uma palavra que bem poderia ser tomada por outra, mas, sim, do sentido que essa palavra adquire no enunciado daquele que dela se apropria para expressar um ponto de vista que, ao mesmo tempo que lhe é próprio, também revela a posição do agrupamento social/político/ideológico ao qual ele pertence.


É desta forma que, uma vez incorporada ao discurso de Temer, a palavra “acidente” tende a soar com um “descompromisso”, uma isenção de responsabilidade do Governo no entendimento daqueles para quem o Governo deveria fazer algo efetivo a esse respeito. Já para aqueles que acreditam que o Governo já faz mais do que deveria e que bom mesmo seria que houvesse uma chacina dessas por semana (tal como defendeu o Secretário Nacional da Juventude), a repercussão em torno do “acidente pavoroso” não passa de uma implicância qualquer – um “mimimi”, como se diz nas redes sociais. E é precisamente este o conhecimento que também deve ser levado em conta quando se pretende alcançar sucesso com o seu “conteúdo-rei”: você verdadeiramente conhece o público (e as reações do público) com o qual pretende interagir?


Muitas vezes, clientes e profissionais de marketing de conteúdo não se dão conta de que algumas das principais particularidades da sua audiência não estão sendo contempladas no desenvolvimento do conteúdo com o qual se espera impactá-la positivamente. E mais: muitos não entendem o motivo pelo qual, não bastasse não influenciá-la positivamente, essa audiência não apenas não adere ao conteúdo, mas ainda se dispõe a rejeitá-lo, criticando-o em comentários, compartilhamentos, etc. O problema, porém, segue se concentrando numa pergunta relativamente simples: você conhece as pessoas com as quais o seu conteúdo está dialogando? Você está a par de quais são os seus interesses, de qual é o seu vocabulário mais usual e, sobretudo, de quais são os seus valores? Tem certeza de que o sentido que atribui a algumas palavras tem o mesmo sentido que, em geral, os leitores do seu blogue e/ou os seguidores das suas redes sociais depreendem ao lerem esse registro? A abordagem do seu conteúdo é respeitosa o bastante para não consterná-los em questões que simplesmente não lhe dizem respeito e/ou que nada têm a ver com a imagem da sua empresa ou da sua marca?


Perceba que, embora nem sempre sejam apresentados como os mais “óbvios”, esses apontamentos têm a sua razão de ser e se manifestam como um diferencial quando se trata de conquistar a adesão ou a rejeição das pessoas.


Infelizmente, muitos conteúdos que se pretendem “reis” não sabem como dialogar com o seu próprio povo e/ou simplesmente não dispõem de “sensibilidade” o bastante para rever a abordagem quando a própria população sinaliza o seu descontentamento diante daquilo que lhe está sendo exposto. E, a exemplo do que ocorreu com o Catraca Livre no mês de novembro (quando perdeu nada menos que 400 mil seguidores na sua fan page após a publicação de manchetes como “Medo de voar? Saiba como lidar com isso!”, “Passageiros que filmam pânico em avião”, “10 mitos e verdades sobre viajar de avião” na mesma data em que foi anunciado o desastre com o avião da Chapecoense), tenha em mente que não vale qualquer medida/qualquer chamada/qualquer redação para ganhar atenção, sendo esta uma condição básica para que o seu “conteúdo-rei” seja mesmo “legítimo”. Do contrário, ele pode ser “deposto” pela sua audiência. E, ainda que não se trate de um “acidente”, acredite: o efeito pode ser realmente “pavoroso”!


*Artigo originalmente escrito para a Tracto, que o mantém disponível no link http://www.tracto.com.br/de-conteudo-rei-a-conteudo-plebeu-um-acidente-pavoroso/ e à qual agradecemos a publicação.

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